quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

HOJE ACORDEI ME SENTINDO UM MORTO NA ALDEIA

Não sou um leitor fiel mas rendo-me facilmente aos textos bem escritos, às idéias bem construídas... Como todo mundo, tenho variações de humor que horas me fazem pender para um lado, horas para o outro... Mas, como já falei diversas vezes, acostumei-me com essa constante busca pelo equilíbrio. Gabriel Garcia Marquez escreveu um dos mais belos contos que já tive a oportunidade de ler... Ele fala de transformação e de como podemos interferir, ainda que por inércia, na vida das pessoas... Prefiro, metaforicamente, ser o morto que transforma a ser um dos vivos que se arrepende de tudo o que nunca fez! Mas, confesso, já tive dias de morto e de vivo!

De presente para vocês, o “Morto na Aldeia” de Gabriel Garcia Marquez:

“Era uma aldeia de pescadores perdida num fim de mundo, onde a monotonia e o tédio haviam se apossado dos corpos dos homens e das mulheres, de sorte que, dos seus olhos, fugira toda a luz, e ninguém esperava receber das palavras de alguém fosse beleza, fosse sorriso, fosse amor... Era a eterna repetição do mesmo enfado e do mesmo tédio...Foi então que um menino que olhava para o mar viu uma forma flutuando ao longe, diferente de tudo o que ele já havia visto. Ele gritou - e todos vieram correndo, na esperança, talvez, de uma novidade que lhes desse assunto sobre o que falar.E lá ficaram, parados na praia, esperando, até que finalmente o mar, sem pressa, depositou a coisa estranha na areia... Era um morto desconhecido, tendo por roupa só as algas, os liquens e as coisas verdes do mar.Desconhecido, sem passado e sem nome... Mas tinham de fazer o que deviam: os cadáveres têm de ser enterrados. E era costume naquela aldeia que os mortos fossem preparados pelas mulheres para o sepultamento. Assim, o levaram para uma casa e o colocaram eucaristicamente sobre uma mesa, as mulheres de dentro, os homens de fora, e grande era o silêncio - até que uma delas, com voz trêmula, observou: "Tivesse ele morado em nossa aldeia, teria de ter abaixado a cabeça sempre para entrar em nossas casas, pois é alto demais"... E todos assentiram com um imperceptível gesto de cabeça.Mas logo uma outra falou - e perguntou como teria sido a voz daquele homem, se teria tido em sua boca as palavras que fazem com que uma mulher apanhe uma flor e a coloque no cabelo... E todas sorriram, algumas delas chegando a passar as mãos pelo cabelo, com saudades...E grande foi o silêncio, até que aquela que limpava as mãos inertes do morto perguntou sobre o que elas teriam feito, se teriam construído casas, travado batalhas, navegado mares e se teriam sabido acariciar o corpo de uma mulher...Ouviu-se, então, um discreto bater de asas, pássaros de fogo entrando pelas janelas e penetrando nas carnes.E os homens, espantados, tiveram ciúme do morto -que era capaz de fazer amor com suas mulheres de um jeito que eles mesmos não sabiam. E pensaram que eram pequenos demais, tímidos demais, feios demais, e choraram os gestos que não haviam feito, os poemas que não haviam escrito, as mulheres que não haviam amado.Termina a história dizendo que eles, finalmente, enterraram o morto. Mas a aldeia nunca mais foi a mesma.”